Sobre a memória dos cheiros
O olfacto é um dos sentidos mais primitivos no homem, e estarmos atentos aos cheiros é uma reacção primitiva e instintiva de nos apropriarmos e relacionarmos com o que nos rodeia.
Definitivamente, o olfacto não é o meu melhor sentido, mas guardo na memória imensos cheiros que evocam outras tantas recordações.
Enquanto que poderemos confundir um som ou esquecer-nos de uma imagem, há quem diga que a memória dos cheiros é infinita. As pessoas ao cheirarem algo, a sua memória irá guardar esse aroma para sempre e jamais se esquecerá dele, guardando na memória as suas características assim como as lembranças com eles relacionadas, remetendo para os momentos em que foram vividos.
Os aromas não entram só pelo nariz. Alguns deles fixam-se na lembrança para sempre e tocam directamente ao coração, estabelecendo uma ligação profunda com a nossa parte emocional.

Apesar de muitas vezes distante, são também muitas vezes os cheiros que me mantem presente.
Desde quase sempre, quando ia à aldeia de férias, eram sempre os cheiros que me propocionavam a melhor recepção de boas-vindas. E das alturas que gostava mais era no Inverno.
Nessas alturas, destas e doutras chaminés e chupões, naquelas noites sossegadas em que o fumo pairava sobre a aldeia, conseguia ir buscar o cheiro da lenha ardida nas lareiras e dos peguilhos que lá se encontravam a assar. Sinto saudades desses cheiros e desses tempos!
Como de outros aromas que já não cheiro há muito tempo, mas que estão tão vivos como outrora e que tantas boas recordações muitas vezes me oferecem: o cheiro da cevada acabada de segar; o cheiro do Sebastião que tantas vezes toquei pela rédea ou o cheiro fresco da terra molhada.

Eu sabia da existência deste tipo de chaminés de telha, mas esta descobri-a por acaso ao deambular pela aldeia. Nada mais simples do que duas telhas ao alto e encostadas, onde o engenho aguçado pela necessidade permitia que o fumo lá se esgueirasse por tão singela saída.
Agora continuo a estar distante, mas os cheiros da aldeia já pouco me atraem, antes pelo contrário.
Ainda ontem, quando à noite, em família tentavamos passar uns momentos à fresca em amena cavaqueira, eis que surge de repente, tocado pelos ventos de Benlhevai pela fragada abaixo, aquele aroma pestilento e nauseabundo que tira logo a boa disposição à gente.
Se no Inverno ainda se tolera pelo recolhimento a que somos obrigados por via do frio, agora no Verão em que as casas estão insuportavelmente quentes, não se pode estar na rua de maneira nenhuma.
E então não se faz nada? Vamos deixar a continuar a sermos incomodados pelo mau estar daquele cheiro pestífero? Julgo que se trata de uma questão de saúde pública.
"O perfume permanece como a forma mais tenaz da memória"
Marcel Proust